Como dizia o professor Olavo de Carvalho, o poder cultural é maior que o poder político, que por sua vez, é maior que o poder econômico. Em se tratando de poder, a economia é o menos relevante e a Rússia se acomodou nas suas enormes reservas de petróleo e gás como um jovem que não precisa trabalhar por herdar uma fortuna.
O poder da Rússia, de fato, é cultural e militar, ainda que use armamentos sucateados e soldados jovens mal treinados, quando não mercenários. Quando você pisa em qualquer ex-república soviética, é visível que o russo continua sendo uma língua franca, na maioria destes países, a única língua franca. O cidadão russo médio, vamos assim dizer, acha que você deve aprender a falar russo e fim de papo.
Até mesmo na Ucrânia e os países bálticos (Lituânia, Letônia e Estônia), onde a maioria da população não quer mais saber de comunismo, as praias e as cidades turísticas vivem cheias de russos no verão porque eles podem falar russo. E o mesmo se passa em Goa (Índia), em Israel, nos resorts da Turquia e nos destinos de viagem mais populares entre os russos: hotéis e restaurantes com funcionários que falam russo, bares e boates tocando pop russo, etc.
A Rússia como conhecemos hoje nasceu das ações de Ivan IV, mais conhecido como Ivan o Terrível, quem se declarou o primeiro Czar da Rússia após derrotar os mongóis e unificar o território ocidental do país com base em Moscou no século XVI. Dominada Moscou, Ivan expandiu militarmente para o Leste conquistando os khanatos de Kazan e Astrakhan, além da Sibéria, que compreende a maior porção do território russo.
Numa mistura de Europa e Ásia, a Rússia se formou culturalmente isolada dos outros grandes impérios até o século XVIII, quando o czar Pedro o Grande importou tendências européias da época, a exemplo do construção da bela cidade de São Petersburgo e de Peterhof. Através deste isolamento, nasceu um planeta à parte onde tudo funciona em língua russa.
Existe um vasto universo cultural em língua russa que compreende literatura, cinema, música, teatro, balé, desenhos animados, mídias sociais; e tudo o mais que se possa imaginar tanto em alta cultura quanto em cultura popular. Você conhece o desenho animado Cheburashka (Чебурашка)? Já assistiu ao programa de TV ucraniano Orel i Reshka (Орел и решка)? Já assistiu ao filme de comédia Ivan Vasilievich: Back to the Future (Иван Васильевич меняет профессию)? Você tem perfil no Vkontakte? Já fez uma pesquisa no Yandex? Já escutou alguma música do Leonid Agutin, da Ëlka, do Basta ou do Ivan Dorn?
Eu assistia a Orel i Reshka (Орел и решка) com meus hosts na Ucrânia e na Rússia; amigos meus da Ucrânia, da Letônia e da Rússia cresceram assistindo à Cheburashka (Чебурашка) em vez do Mickey Mouse; o Ivan Dorn faz shows em Moscou, em Kyiv, em Baku (no Azerbaijão) e em Astana (no Cazaquistão). E até bandas e cantores ucranianos como 5´nizza, Monatik, Vremya & Steklo cantam em russo. Só para mencionar alguns exemplos.
Não temos a noção da influência cultural que a Rússia exerce sobre o Leste Europeu e a Ásia Central simplesmente por barreira de idioma. E o maior medo do Putin, tal como de qualquer um que o substitua, é ver a Rússia perdendo esta influência nos países-satélite da antiga União Soviética. Logo, para fazer qualquer análise sobre este país com fontes primárias, é necessário ler e estudar em russo. Além dos clássicos da literatura russa, não muita coisa é traduzido para outros idiomas.
Durante a União Soviética, o Estado podia decidir até que curso universitário um cidadão podia fazer e onde ele viveria. Então, uma pessoa podia nascer na Rússia e ir parar na Ucrânia ou no Cazaquistão por transferência de trabalho. Ou podia nascer na Ucrânia de uma família russa, falando o idioma russo e crescendo com uma bagagem cultural completamente russa, que a longo prazo pode ser usado para fomentar movimentos separatistas.
A Ucrânia quer se abrir para o mundo
O meu primeiro contato com a língua russa e a cultura pop soviética foi exatamente na Ucrânia, onde pela primeira vez ouvi falar da Cheburashka enquanto caminhava em Kyiv no meio de uma feira de antiquários perto da Catedral Andriyivsky, como se vê na imagem abaixo.
Todavia, cabe destacar que a Ucrânia tem sido uma das ex-repúblicas soviéticas que mais tem se aproximado do Ocidente desde os anos 1990, e é exatamente o que a maioria da população ucraniana deseja. A aproximação com o Ocidente é vista como um caminho para mais oportunidades de melhorar de vida, mais empregos e melhores condições econômicas.
Momentos-chave da história ucraniana envolvem tensões com a Rússia e o melhor exemplo é a biografia do herói nacional Taras Shevchenko, cujo nome está presente em todos os lugares públicos do país. Por oposição ao domínio russo, ele foi preso durante 10 anos (1847-1857) ao fomentar a idéia de uma Ucrânia independente nos seus trabalhos como escritor, poeta, dramaturgo e pintor.
Diferente da Rússia, você pode andar pelas principais cidades ucranianas falando inglês, já que uma crescente parcela da população jovem fala o idioma de Shakespeare. Já na Rússia, tive que me virar no russo enquanto viajava até para compras no mercado e comprar passagens de trem. Não muitos russos falam inglês, mesmo nas cidades maiores como Moscou e São Petersburgo, já estive em hostel onde ninguém falava nenhum outro idioma quando ia a uma cidade menor.
A maioria da população ucraniana vive com menos de USD 200 por mês, para ser preciso, algo em torno de USD 120 e USD 150. Os salários na Ucrânia, como na maior parte do Leste Europeu, são baixos e já foram mais baixos ainda. No comunismo da vida real, o povo não vê nem a cor do dinheiro e o acesso a tudo é difícil, inclusive comidas e roupas. Além da migalha oferecida pelo Estado, o contrabando acabava sendo a única fonte de mercadorias e renda para o cidadão comum sem conexões com gente influente.
Somando a pobreza, a falta de liberdade e acontecimentos cruéis como o Holodomor, é natural que o povo ucraniano não queira saber de domínio russo outra vez. Não é por acaso que ucranianos de todas as classes sociais estão arriscando suas vidas para defender o seu país da invasão russa.
As gerações de ucranianos que cresceram após o colapso da União Soviética já estão com a cabeça muito além dos horizontes da língua russa, muito mais abertos para o mundo que a juventude brasileira. A Ucrânia vem se firmando como um pólo de T.I., startups estão pipocando nas principais cidades e jovens estão se capacitando em busca de melhores oportunidades.
Há muitos desafios para a Ucrânia além de ser vizinha da Rússia, o país tem uma gigante batalha contra a corrupção e a burocracia soviética que permanece viva. Contudo, sair do comunismo para algo funcional é como sair do menos infinito para o zero. Do 0 para 1, já é outra etapa. Sair da União Soviética e se abrir para o mundo em 30 anos é um feito que não pode ser desmerecido.
Originally posted 2022-02-28 04:33:48.