Choque cultural

Choque Cultural: de que maneira te atingirão os costumes daquele lugar?

O que poderíamos falar de choque cultural além do mil e um posts e vídeos já repetem? Ah, tem a fase do encantamento no início, os eventuais desconfortos com tudo o que é diferente do que estamos acostumados, até o aculturamento a ponto de nos tornarmos um local. E na volta para casa, o tal do choque cultural reverso, que não é frescura, nem discutido com a devida seriedade.

A diáspora brasileira pelo mundo é enorme e se encontra até nos países para onde você jamais imaginaria alguém emigrando. Como já diz aquela frase: “Brasileiro é praga”. É muito difícil estimar a quantidade de brasileiros residindo no exterior, visto que a maioria ou se encontra ilegal ou não exatamente como um turista, sem precisamente residir permanentemente.

De qualquer maneira, tenho visto a maioria dos brasileiros residindo no exterior sem sequer falar o idioma do país, ou falando muito mal, e se comportando como se estivessem no Brasil. Outro país, outras culturas, outras mentalidades, outras leis e regras. E é você que tem que se adaptar e olhar novo país sob o “como as coisas funcionam aqui”. Tu vais encontrar uma cultura que já existia antes de nasceres e vai continuar existindo depois de morreres. Então, a tua opinião, se tu sentes confortável ou desconfortável, não interessa. Nenhuma cultura tem a obrigação de girar em torno do teu umbigo.

Uma mudança para o exterior é literalmente uma reprogramação do seu cotidiano, independente do país ou da cidade aonde tu vais parar. O processo de se adaptar a uma outra cultura já é estressante e, quando subestimamos o desafio ou recusamos a aceitá-lo, simplesmente batemos a cara no muro. Como bem descreve um trecho de uma carta de Sêneca a seu amigo Lucílio: “Uma viagem jamais emitiu um julgamento ou desfez um erro”. O mesmo vale para emigrar. Na mesma carta de Sêneca, fica para reflexão o seguinte trecho:

Imagina que estejas em Atenas, em Rodes. Elege simplesmente outra cidade qualquer. De que maneira te atingirão os costumes daquele lugar? Tu carregas os teus.

Do outro lado, também tenho visto brasileiros voltando de intercâmbios, estágios e de experiências de trabalho no exterior, e não conseguindo mais se adaptar ao Brasil. Eu me incluo nessa lista e, por experiência própria, sei o quanto é extremamente angustiante o choque pós-retorno. Poucas pessoas vão te entender. Teus horizontes se expandem, tu te acostumas a uma vida que não dá para ter no Brasil, de repente, aquela experiência que era para ser transitória te abre um mundo de possibilidades incompatíveis com aquela velha rotina de antes. Justamente o medo de perder as facilidades, os confortos e os benefícios encontrados no estrangeiro, que não são acessíveis na realidade do Brasil, faz com que muitos brasileiros apelem a todos os meios legais e ilegais para retornarem.

Entendendo as fases do choque cultural

O choque cultural costuma ocorrer em ciclos, e os teus ânimos variam conforme te sentes inadequado ou familiarizado com a cultura do país de destino, tal qual de acordo com o tempo de permanência. Cada ciclo influencia a tua percepção de cada experiência no estrangeiro e do país que te encontras. Uma coisa é ir a turismo, outra é viver por um tempo suficiente para conhecer os prós e os contras que todo país tem. Vamos, então, com a descrição de cada um dos ciclos.

Reações emocionais ao longo da experiência no estrangeiro
Reações emocionais ao longo da experiência no estrangeiro
As fases do choque cultural
As fases do choque cultural

A fase do encanto

A fase do encanto costuma ser a visão de turista, marcada pelo fascínio pelo diferente, o lado bom normalmente se destaca nos primeiros dias. Todavia, mesmo numa viagem curta, um simples gesto que nos é normal pode ser obsceno no país onde te encontras; ou a inobservância de certos hábitos locais pode causar estranheza, ofensa ou render gafes. Depois da primeira gafe, vem a ansiedade.

A fase do desencanto

A fase do desencanto vem logo no momento em que aparecem as primeiras experiências desconfortáveis, ou algum motivo que te cause repulsa, tu passas a perceber tudo que te parece estranho. É a fase que, logo depois do encantamento, começam os sentimentos de tédio, stress, irritação, frustração, saudades de casa, a angústia de não ser compreendido e de não entender o que se passa. Não menos incômodo são a barreira de idioma, a estranheza com hábitos e costumes locais e a dificuldade de comprar produtos que sempre usamos. É quando nós nos pegamos perguntando: O que estou fazendo aqui? E também do criticismo exagerado à outra cultura e da idealização do teu modo de vida.

A fase de resolução

A fase de resolução costuma ser o tudo ou nada, aquele momento em que tu decides se “aceitas o desafio ou vais embora”. Passados os desconfortos iniciais, tu te acostumas ao que te parecia estranho, e vais aos poucos te soltando. Enfim, é a fase em que começas a aceitar a cultura local. Pois é, “eles são assim mesmo”. São apenas diferentes maneiras de perceber o mundo e de levar a vida.

A fase de adaptação

A fase de adaptação é quando tu já te sentes como um local, após aceitar as diferenças culturais que no início causavam desconforto, tu já as abraças. A esta altura do campeonato, tu já esqueces que és um estrangeiro, comportas como um membro daquela sociedade onde passas a viver. É a fase em que vem à tona o sentimento de pertencimento.

Dicas para entender uma outra cultura

De início, busque no país onde te encontras elementos que te fazem sentir em casa, sobretudo entre os aspectos positivos que te interessam: comidas e bebidas locais, música, dança, cultura, atividades, paisagens, etc. Caso esteja a trabalho, estudo, intercâmbio ou como missionário – lembre por que foste ao país, foca nos teus objetivos e abraça a aventura no processo de adaptação.

Indo mais afundo, observe os hábitos e comportamentos da população local assim que chegar ao país de destino. Assim que for se familiarizando com o país e contatando pessoas por informações antes da ida, observe as diferenças no modo de se comunicar, nas hierarquias sociais, nas formas de organização no trabalho e os hábitos diários dos locais. Como uma forma de simplificar a leitura de uma outra cultura, recomendo a metodologia do Geert Hofstede e seus livros, através da qual baseio observações nas dimensões descritas abaixo.

A sensação de navegar numa cultura diferente. Foto: Victoriano Izquierdo, Unsplash.
A sensação de navegar numa cultura diferente. Foto: Victoriano Izquierdo, Unsplash.

Comunicação direta x indireta

Diferentes formas de cultura têm diferentes formas de se comunicar, e não prestar atenção a este detalhe causa muita confusão e desentendimento. Para quem está acostumado à comunicação indireta, a forma direta costuma soar como grosseira, rude; enquanto que quem está acostumado a uma comunicação direta tende a perder a paciência com frases enfeitadas e entrelinhas.

Comunicação direta: direto ao ponto, curto e grosso, sem babaquices, sem enrolação, sem rodeios. Em sociedades onde predominam a comunicação direta, o pessoal costuma dizer na cara. Exemplos: Israel, Estados Unidos, Alemanha, Holanda, Rússia.

Comunicação indireta: comunicação verbal imprecisa, acompanhada de gestos, emoções, todo tipo de joguinhos, etiquetas, rituais e longas descrições, o famoso “ler as entrelinhas”. Exemplos: América Latina, Índia, mundo árabe, Grécia, Japão, China, Portugal, Espanha, Itália.

Formas de expressão: extrovertidos x introvertidos

Acompanhando a forma de comunicação, em algumas culturas predomina a extroversão com direito a danças, rebolados e todo tipo de gestos; enquanto em outras, é mais comum a introversão.

Sociabilidade: reservados x sociáveis

Há sociedades onde é mais fácil fazer amizades e se integrar com os locais, porém, há sociedades onde tal contato é mais difícil. Sem querer generalizar, mas generalizando, a vida social com que estamos acostumados na América Latina e no Mediterrâneo, não existe no centro e no norte da Europa, por exemplo. É importante observar que o conceito de amizade muda muito de um país a outro, e fora da América Latina, amizades costumam levar mais tempo para se estabelecer. Conhecer pessoas através de hobbies e atividades do teu interesse é a melhor alternativa caso te encontres num país onde não conheça ninguém.

Noção de tempo: linear x fluida

O contato com uma diferente noção de tempo não costuma ser um problema para quem está a turismo, mas quem permanece por um longo tempo a trabalho e a estudo, pode ser uma dor de cabeça para quem não está acostumado a atrasos. Aqui é o choque entre planejamento e espontaneidade.

Noção de tempo linear: pontualidade é tudo, atrasos são interpretados como ofensa e as pessoas estão acostumadas a planejar tudo, como ocorre nas culturas germânicas e anglo-saxã, tal qual no Japão. Aqui, vale prestar atenção às etiquetas locais em caso de atraso. Enquanto que na Alemanha, avisar com a máxima antecedência possível que vai atrasar por um problema no trânsito é aceitável; na Suíça e na Holanda, uma companhia de trem vai publicar nota de desculpas por um atraso de 2 minutos.

Noção de tempo fluida: pontualidade não é a regra e a depender da sociedade, nem o conceito de tempo existe, tudo flui na espontaneidade. Os atrasos podem ir de alguns minutos a horas sem nenhuma ofensa, e os serviços tendem a ser entregues no mesmo ritmo, seguidos a enrolação e a passos de tartaruga. Na minha época de AIESEC no Brasil, só os estrangeiros chegavam à hora combinada… Outros exemplos são os “cinco minutos indianos”, os “cinco minutos egípcios”, o “African time” no continente africano.

Relações de trabalho: relacionamento x tarefa

As relações de trabalho estão entre as mais importantes dimensões para quem vai trabalhar ou estagiar no exterior. Trabalhar e interagir com times muda muito de uma cultura a outra, conforme a importância que se dá a construir relacionamentos ou executar as tarefas.

Orientada à execução da tarefa: aqui, o que vale é executar o trabalho esperado, entregar resultados, produtividade, e ponto final. Em sociedades onde tal mentalidade predomina, cada um faz o seu trabalho na hora designada e cuida da sua vida particular – ninguém é obrigado a fazer churrasco, tomar cervejas e sair com colegas de trabalho, o patrão não vai te perguntar como vai sua vida, nada de fofoca, café se toma em casa. É o que tende a predominar nos Estados Unidos e nos países germânicos, por exemplo.

Orientada a relacionamento: aqui, construir relacionamentos tem mais peso que executar a tarefa em si, sobretudo aos gerentes para com a sua equipe. Em sociedades mais orientadas a relacionamento, conquistar a confiança é o primeiro passo para fechar um negócio, as negociações são mais longas, os vínculos emocionais são decisivos para a produtividade, tal qual conflitos e picuinhas entre os membros. Outro lado da moeda tende a ser priorizar conexões em vez de competência, seja por corrupção ou como defesa à insegurança jurídica e política, como costuma ocorrer na América Latina, no Leste Europeu, no Oriente Médio e na maior parte da Ásia.

Relações sociais: hierarquia rígida x flexível

Na dimensão das relações sociais, entram as relações de poder e distância entre os membros da sociedade local. Ao contrário do que a turma do politicamente correto busca crer, toda sociedade tem suas formas de poder e símbolos de status, mais evidente em algumas e mais discreto em outras.

Hierarquia rígida: distância entre chefe e funcionários, protocolos e etiquetas de relacionamento no cotidiano, locais com alto status mais propensos a exibir poder e mostrar quem manda – “Sabe quem eu sou? Sabe com quem está falando?”. Como já estamos acostumados no Brasil, os símbolos de poder podem ser representados na marca de roupa, no carro, no bairro onde reside, cargo, na forma em que fala a língua materna, etc.

Hierarquia flexível: distância entre chefe e funcionários costuma ser mais fluida, protocolos e etiquetas tendem a ser menos rígido. Contudo, não quer dizer que todos cantem Imagine juntos ao sob o mantra “ninguém solta a mão de ninguém”.

Relação homem x mulher

A relação entre homens e mulheres é um tópico delicado na maior parte do mundo, sobretudo para mulheres, mesmo a turismo. Na maior parte da Ásia e do Oriente Médio, existe uma certa distância entre homens e mulheres (além de assédio sexual), e rompendo tal distância, locais podem interpretar como uma paquera, estar se oferecendo, dando em cima. E por não observar esse detalhe, uma estrangeira já pode ser vista como “mulher fácil”, e ser tratada de uma forma com a qual jamais se faria com uma mulher local. Preste atenção a como as mulheres locais se vestem e se comportam, e siga os mesmos passos para evitar desentendimentos. Caso contrário, tu podes cair em roubadas por infantilidade. Observe os tabus locais, o que se espera de homens e mulheres no país, o que entendem por relacionamento e casamento.

Bem, espero que este post ajude você a navegar entre diferentes culturas e administrar suas emoções durante uma experiência de choque cultural, que é normal na vida de todos os viajantes e de todos que vivem fora do país de origem.

Originally posted 2021-02-28 21:34:22.